Fatos e argumentos


Por David Kupfer

Claudio Belli/Valor

Não parece exagero a afirmação de que são muitas – e crescentes – as lacunas de conhecimento a respeito do mercado de trabalho no Brasil e como ele vem se ajustando às inúmeras transformações verificadas nos últimos anos. Basta verificar a certa perplexidade causada pela teimosia dos fatos em contrariar as teorias, pelo menos as convencionais, sendo o principal desses fatos a coexistência de aumento dos salários e redução do desemprego com a contração do ritmo de crescimento da economia.

Não há outra opção, portanto, que não seja mergulhar na tarefa de buscar bons números que descrevam o que está realmente acontecendo no mundo do trabalho.

Nesse tema, seguramente, uma das mais completas fontes de informações que se dispõe é a Pesquisa Industrial Mensal de Emprego e Salário (Pimes), do IBGE, cuja série teve início em dezembro de 2000 e registra informações sobre pessoal ocupado, folha de pagamento e número de horas pagas para a indústria, desagregada em 15 setores. Adicionalmente, ajustando-se as referências iniciais dos índices e adotando-se uma classificação de atividades adequada, é possível compatibilizar a Pimes com a PIM, que é a pesquisa, também do IBGE, dedicada a estimar a variação da produção física da indústria mês a mês. Obtém-se assim uma rica base de dados que permite aprofundar o diagnóstico de situação do emprego industrial no país.

Cerca de dois terços dos setores apresentaram crescimento dos salários reais de 20% a 40% entre 2007 e 2008

Os dados apresentados adiante foram obtidos pelo cruzamento das variações dos índices de base fixa tomando-se como referência 100 os valores vigentes em dezembro de 2002. As variáveis estimadas foram a produtividade (razão entre as variações da produção física e do número de horas de trabalho pagas) e o salário real (razão entre as variações da folha de pagamento real e do número de horas pagas). O objetivo inicial foi o de estimar valores para a relação incremental salário-produtividade. Em um momento posterior, vai se buscar incorporar as variações das taxas de câmbio efetivas setoriais de modo a se inferir os impactos do custo do trabalho sobre a competitividade da indústria relativamente a de países parceiros do Brasil.

Ao contrário do forte crescimento que ocorreu com o emprego no restante da economia, na indústria a quantidade de trabalho pouco variou no período 2002-2013, limitando a um aumento de 0,6%. Mesmo no pico da série, ocorrido em 2010, o índice de emprego foi apenas 6% superior ao inicial. É visível que os setores trabalho-intensivos ajustaram o efetivo de mão de obra para baixo (queda de 12% em papel e gráfica, 20% na têxtil, 47% em vestuário, 51% em calçados e couro ou ainda 60% em produtos de madeira). Na outra ponta, setores capital-intensivos como refino de petróleo (89%), fabricação de meios de transporte (48%) e máquinas e equipamentos (26%) mostraram crescimento consistente até 2012.

Já o comportamento dos salários mostrou-se bem mais homogêneo. Em praticamente toda a indústria o crescimento do salário real foi bastante acentuado, especialmente nos anos de 2007 e 2008 e, principalmente, em 2012. Cerca de dois terços dos setores apresentaram crescimento dos salários reais entre 20% e 40% no período. As principais exceções ficaram por conta de metalurgia básica (-3%) e papel e gráfica (-2%) entre os que mais reduziram remunerações e produtos químicos (50%), vestuário (61%) e fumo (70%) entre os que mais aumentaram.

Para o conjunto da indústria de transformação, entre 2002 e 2010 produtividade e salário mostraram uma evolução razoavelmente sincronizada, especialmente se o período agudo da crise financeira mundial (final de 2008 e 2009) é desconsiderado. No entanto, em 2011 e 2012 é visível o descolamento das duas séries. A relação incremental salário-produtividade, que se manteve praticamente estável em um valor ligeiramente inferior à unidade entre 2002 e 2010, pulou 1,16 em 2012.

Contudo, o fato que mais chama a atenção é a grande dispersão setorial dos resultados. Alimentos e bebidas, refino de petróleo, máquinas e aparelhos elétricos e metalurgia básica foram os setores que mais sentiram a piora da relação salário-produtividade, que chegou em 2013 em níveis de 40 a 60% superiores aos do início da série. Já fabricação de meios de transporte, produtos de madeira e papel e gráfica atravessaram o período com a relação salário-produtividade permanecendo abaixo da unidade.

Essa dispersão, por sua vez, é o reflexo de um grande número de possibilidades de combinações entre variações positivas ou negativas dos seus componentes. Apenas um exemplo: as indústrias têxtil e vestuário apresentaram uma variação da relação salário-produtividade similar (aumento de 30% em ambas). Porém, longe de refletir similaridades estruturais “teoricamente” esperadas, tal fato decorreu de processos de ajustamentos completamente distintos. A indústria de vestuário perdeu muito mais produção (-36% e -25%) e reduziu muito mais intensamente o número de horas pagas (- 47% e -20%), obtendo um aumento de produtividade muito mais significativo (21% contra queda de 6%). Contudo, de forma surpreendente, pelo menos a julgar pelas predições da teoria econômica convencional, a indústria do vestuário aumentou mais fortemente os salários que a têxtil. (61,7% e 24,6%). Tantos outros fatos análogos que podem ser extraídos da Pimes sugerem que a relação entre salário e produtividade muitas vezes é ambígua e quase sempre é de difícil previsão teórica. Abordagens pragmáticas, em que os fatos falem mais alto, serão sempre bem-vindas.

David Kupfer é professor licenciado e membro do Grupo de Indústria e Competitividade do Instituto de Economia da UFRJ (GIC-IE/UFRJ) e assessor da presidência do BNDES. Escreve mensalmente às segundas-feiras. E-mail: gic@ie.ufrj.br / www.ie.ufrj.br/gic. As opiniões expressas são do autor e não necessariamente refletem posições do BNDES.

 

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