Elias Jabbour: O que está acontecendo na China?


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As análises de curto prazo têm um problema muito sério, justamente quando partem ao jogo de adivinho do “longo prazo”. O mesmo ocorre com o exagero que acompanha análises de estratégias de desenvolvimento quando deparadas com acidentes, contradições de curto prazo. Os que estão presos a análises de estratégias de longo prazo, como a chinesa, podem ser pegos de surpresa diante de algum percalço conjuntural. Por outro lado, os afeitos à análise do imediato, muitas vezes sob encomenda, são atraídos pelos números frios e o calor do momento e das expectativas, racionais ou não. Em ambos os casos a atração exercida pelos finais trágicos dos romances de origem anglo-saxônica contamina análise.

Indo agora direto ao ponto: o que está acontecendo com a China? Uma festa com final infeliz de um modelo de crescimento “insustentável”? O erro da fixação de um “Estado autoritário” em manter os dois preços básicos da economia (taxa de câmbio e taxa de juros) sob seu estrito controle? O fim da “farofa” interna da abundante liquidez “descontrolada” desde 2005?

A China levou às últimas consequências a possibilidade de alargamento de sua base monetária e, consigo, as carteiras de crédito em todos os níveis. Foi a resposta dada pelo país em meio ao fechamento relativo de mercados externos devido à crise financeira global. Segundo o André Nassif (“Uma crise chinesa?” publicada no Estado de S. Paulo, 8/7/2015), entre 2004 e 2010, a base monetária e o crédito tiveram aumento de 25% e 20%, respectivamente, isto em um ambiente de inflação doméstica de 2% e de taxas de juros e de crédito fixas em 5,5% e 7,7% desde 2008. Evidente que se trata de um ambiente bastante propicio não somente ao investimento produtivo, mas também ao exercício de algum nível de especulação financeira. Afinal o próprio mercado de capitais na China passou por um intenso de processo de aprofundamento e aumento de seu alcance e sofisticação nos últimos dez anos, em um processo marcado pela intensa participação acionária por parte de pequenos empreendedores e, naturalmente, das suas próprias empresas estatais. Todos atores, como em qualquer lugar do mundo, com uma forte tendência de aversão ao risco. No caso chinês o risco de uma economia em lenta desaceleração.

É evidente que o prazo de validade do crescimento puxado pelo investimento na China está se encerrando e que o consumo deverá aumentar sua participação na composição do PIB. E esta transição promete ser tão dolorosa quanto à observada, a partir de 1978, de uma “economia de comando” a outra, de “mercado sob escopo do plano”. As dores do parto são inevitáveis. Um exemplo interessante como pode ser notado no papel de “gasolina na fogueira” exercida pela alta inflacionária interna às manifestações que sacudiram Pequim entre maio e junho de 1989. E a China, e o rumo traçado em 1949/1978, mantiveram-se inalterados desde então. Assim como os acontecimentos centrados em seu mercado de capitais nas últimas semanas manterá os rumos do país pouco alterados. Pois, a própria causa primária destes acontecimentos demonstra bem sobre quem realmente dá as cartas no jogo na China. Estaria sendo por demais otimista? Creio que não.

O que é peculiar no presente episódio? Primeiro, o incentivo do governo aos chamados “empréstimos marginais” como forma – primitiva – de mobilização de poupança de pequenos e médios poupadores, que parece ser parte inicial da transição do crescimento pautado pelo investimento para o crescimento puxado pelo consumo. Este tipo de endividamento levou as próprias empresas estatais à procura desta forma de financiamento. Quase que de forma automática uma bolha especulativa formou-se no país com o Estado passando, fortemente, a desinflá-la, proibindo a oferta deste tipo de empréstimo. O “efeito manada” é quase uma lei da natureza com preços de ações despencando e, respectivo, contágio pelo restante do conjunto da economia.

Neste contexto, perguntamos: Iniciamos um nova crise financeira? Há perspectiva de volta à normalidade no médio e longo prazo? A primeira resposta é não. A segunda é sim. A proibição por parte do Estado de operações financeiras de cerca de 1300 companhias listadas na bolsa e obrigação às estatais de não mover suas posições no mercado de ações colocarão este mercado em posição de normalidade ainda nas próximas semanas. Neste aspecto, o papel decisório do Estado sobre suas empresas é de fundamental importância em comparação com o não poder exercido pelo Estado norte-americano, e europeu, sobre as firmas bancárias sediadas em seus territórios. O aspecto relevante, neste particular, está justamente no fato de o poder estatal chinês não ser refém de grandes interesses corporativos de toda e qualquer espécie. Eis uma diferença fundamental a ser destacada.

Existe muita matéria a ser escrita ainda a respeito desta “bolha” chinesa, e não tenho pretensão de esgotá-lo aqui. Meu recado aos pretensos demiurgos da “tragédia chinesa” é: tentem ser, ao menos, mais criativos. Diversifiquem os argumentos repetidos há quase três décadas. A capacidade comprovada da governança chinesa em gerir crises é extensamente comprovada. Até porque, a eles, crise e superação são parte do mesmo ideograma de um imenso alfabeto. E mais importante: o “santo remédio” da liberalização ainda não faz parte do horizonte deles.

Artigo publicado no jornal valor Econômico 13/07/2015

ELIAS JABBOUR, Doutor e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP. Professor Adjunto, na cadeira de Teoria e Política do Planejamento Econômico, da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-UERJ). Membro do Comitê Central do PCdoB.

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