Floriano, a defesa da democracia e da independência econômica


Por CARLOS LOPES

Quando Floriano Peixoto morreu, a 29 de junho de 1895, no distrito de Divisa, em Barra Mansa, Estado do Rio de Janeiro, foi encontrada em seu bolso a carta que passou à História como seu testamento político. Era resposta a uma homenagem prestada por jovens:

“Meus amigos – recebo com especial agrado a sincera manifestação do vosso apreço. Ela tem para mim um valor inefável, pois revela a generosidade dos vossos nobres corações.

“Ela me enche a alma de um prazer imenso, porque vejo nela um tributo de vossa gratidão a um velho servidor da Pátria, que lhe consagrou de coração o melhor da vida, e da República, por amor da qual sacrificou o resto de sua saúde e vigor que lhe deixou a penosa campanha do Paraguai.

“Hoje, como vedes, vivo longe do lar a procurar em vários climas a reparação das forças perdidas nas lutas pela Pátria e pelas novas instituições.

“Nessa peregrinação, alimento a esperança de alcançar do Criador a mercê de viver mais algum tempo para prover a educação dos filhos, órfãos há cinco anos dos cuidados paternos; e também para lograr o prazer de contemplar a jovem República livre dos embaraços que ora lhe estorvam os passos, a marcha desassombrada e feliz ao lado das nações mais adiantadas do Velho e do Novo Mundo.

“A vós, que sois moços e trazeis vivo e ardente no coração o amor da Pátria e da República, a vós corre o dever de ampará-la e defendê-la dos ataques insidiosos dos inimigos.

“Diz-se e repete-se que ela está consolidada e não corre perigo. Não vos fieis nisso, nem vos deixeis apanhar de surpresa.

“O fermento da restauração agita-se em uma ação lenta, mas contínua e surda. Alerta! Pois. A mim me chamais o consolidador da República. Consolidador da obra grandiosa de Benjamin Constant e Deodoro são o exército nacional e uma parte da armada, que à Lei e às instituições se conservaram fiéis.

“Consolidador da República é a guarda nacional, são os corpos de polícia da Capital e do estado do Rio, batendo-se com inexcedível heroísmo e selando com o seu sangue as instituições proclamadas pela Revolução de 15 de novembro.

“Consolidador da República é a mocidade das escolas civis e militares derramando o seu sangue generoso para com ele escrever a página mais brilhante da história das nossas lutas.

“Consolidador da República, finalmente, é o grande e glorioso partido republicano, que, tomando a forma de batalhões patrióticos, praticou tais e tantos feitos de bravura, que serão ouvidos sempre com admiração e respeito pelas gerações vindouras.

“São esses os heróis para os quais a Pátria deve volver os olhos, agradecida.

“À frente de elementos tão valiosos, não duvidei, um momento sequer, do nosso triunfo, e, pedindo conselhos à inspiração e à experiência e procurando amparo no sentimento da grande responsabilidade que trazia sobre os ombros tive a felicidade de poder guiar os nossos no caminho da vitória.

“Foi esse o meu papel.

“Se mérito existe, não almejo outra recompensa, senão a prosperidade da República e a estima dos que sinceramente lhe consagram o seu amor.

“Vou terminar: as prescrições médicas não me permitem o mais leve trabalho mental; mas, para corresponder à vossa gentileza, não duvidei infringir os conselhos da ciência e escrever estas linhas, que vos entrego como penhor e testemunho da minha eterna gratidão.

“Divisa, junho de 1895

“Floriano Peixoto”.

Os conflitos agudos que atravessam o período em que Floriano Peixoto ocupou a Presidência da República (ele jamais usou o título “presidente”; oficialmente, era o “vice-presidente” em exercício), refletem a luta “entre a velha e a nova estrutura de produção, entre a economia exportadora e a economia de mercado interno, entre o latifúndio e a burguesia, aquele poderosamente reforçado pelo imperialismo, esta contando com as simpatias das classes e camadas inferiores, e particularmente da pequena burguesia urbana, muito ativa em seus pronunciamentos e em suas ações, ainda que desorganizadas” (Nelson Werneck Sodré, História da Burguesia Brasileira, Civilização Brasileira, 2ª ed., 1967, p. 196).

Sobre o florianismo penderiam as acusações de “culto à personalidade” – as mesmas que, no plano internacional, seriam dirigidas a Stalin – e fanatismo, que apenas revelam a sua popularidade.

Como já se disse, o florianismo era a forma de luta da pequena-burguesia urbana – também chamada “classe média” – pelas mudanças anunciadas na Proclamação da República. Ou, o que é a mesma coisa, a luta dessa fração mais avançada e mais dinâmica da burguesia, contra a restauração do status quo anterior e pela industrialização do país.

Não é um acidente que os homens que lideraram as revoltas contra Floriano – aquelas reunidas sob os nomes de “revolta federalista” e “revolta da Armada” – fossem (como Custódio José de Melo, Gaspar Silveira Martins e Saldanha da Gama) egressos e favoritos da monarquia.

Esses homens pretendiam restaurar o trono e recolocar nele algum descendente de Pedro II?

É pouco provável. Mas queriam, ainda que formalmente sob a República, restaurar a estagnação, a submissão ao exterior e o atraso da situação monárquica.

Nesse sentido, é interessante como a acusação de “jacobinismo”, feita ao florianismo sobretudo por Saldanha da Gama – o mais explicitamente monarquista dos chefes antiflorianistas -, revela o caráter dessa oposição à República.

O que foi o jacobinismo, senão a tendência pequeno-burguesa – e mais radical – da Revolução Francesa?

Ao acusar o florianismo de “jacobino”, Saldanha, um dos almirantes prediletos da corte imperial, estava se colocando, consequentemente, como aristocrata – tal e qual a nobreza da França no final do século XVIII.

Anos depois, durante a Revolta da Chibata (1910), alguém lembraria que Saldanha foi um dos mais famosos “chibateiros” (isto é, escravagistas) da Marinha.

Mas, antes de voltarmos ao florianismo, cabe indagar quem era o homem em torno do qual ele se constituiu.

Quem era Floriano Peixoto?

Era, em primeiro lugar, um homem de origem pobre, nascido num engenho de Alagoas, criado pelo padrinho e futuro sogro, porque seus pais não tiveram condições de criar todos os filhos.

Era, também, um homem de coragem inexcedível, que iniciou a Guerra do Paraguai como primeiro tenente e a encerrou como tenente-coronel, condecorado com a Ordem de Cristo (pela participação na batalha fluvial que impediu as duas colunas paraguaias de fazer junção no Rio Grande do Sul); com a Ordem da Rosa (por bravura na batalha de Tuiuti); com a Imperial Ordem do Cruzeiro, pelas batalhas da “dezembrada” (Itororó, Avaí, Lomas Valentinas e Angostura); com a Medalha de Uruguaiana e a Medalha Especial da Campanha do Paraguai.

É bastante conhecido o relato, publicado por um jornal argentino, de Medeiros e Albuquerque – o poeta e autor do Hino da República -, sobre um ato de Floriano Peixoto na Guerra do Paraguai:

“Certa ocasião, em missão de patrulha, Floriano estava a cavalo à frente de seus homens quando uma granada inimiga caiu próximo a ele, com o pavio ainda aceso, pondo em risco a vida de todo o grupo. Sem hesitar, Floriano colocou de pronto a montada sobre a granada, determinando aos comandados que seguissem adiante. Frente àquele exemplo de coragem, os homens obedeceram enquanto a granada explodia dilacerando o ventre do animal e arremessando seu ginete ao chão, porém sem ferir ninguém. Num átimo de segundo, Floriano decidira sacrificar o animal que o conduzia para poupar a vida de seus soldados, ainda que pondo em risco a sua própria.”

Apesar disso e de outras conhecidas qualidades, Euclides da Cunha, em Contrastes e Confrontos, desenhou dele um retrato, em boa parte, injusto (“Traduz de modo admirável, ao invés da sua robustez, a nossa fraqueza”).

Mas, quando se refere aos fatos, o autor de Os Sertões é surpreendentemente acurado. Por exemplo, sobre o dia da Proclamação da República:

“… quando diante do ministério vencido o marechal Deodoro alteava a palavra imperativa da revolução, não era sobre ele que convergiam os olhares, nem sobre Benjamin Constant, nem sobre os vencidos — mas sobre alguém que a um lado, deselegantemente revestido de uma sobrecasaca militar folgada, cingida de um talim frouxo de onde pendia tristemente uma espada, olhava para tudo aquilo com uma serenidade imperturbável. E quando, algum tempo depois, os triunfadores, ansiando pelo aplauso de uma plateia que não assistira ao drama, saíram pelas ruas principais do Rio — quem quer que se retardasse no quartel-general veria sair de um dos repartimentos, no ângulo esquerdo do velho casarão, o mesmo homem, vestido à paisana, passo tranquilo e tardo, apertando entre o médio e índex um charuto consumido a meio, e seguindo isolado para outros rumos, impassível, indiferente, esquivo…

“E foi assim — esquivo, indiferente e impassível — que ele penetrou na história.”

Da mesma forma, em relação ao golpe – o fechamento do Congresso – de Deodoro, a 3 de novembro de 1891, quando Floriano era (e foi) a esperança da democracia no país. Posteriormente, Euclides reformulará seu julgamento sobre Floriano, como na carta à Lúcio Mendonça em que conta a audiência que teve para pedir pelo sogro, general Sólon Ribeiro, na época suspeito de conspiração contra o governo:

“Floriano cerrou o semblante, contraindo o cenho com insólita expressão. Supus que tinha errado, procurando-o. A minha ansiedade era tamanha que, se encontrasse um revólver à mão, eu seria eliminado. De súbito um monossílabo. Esperei a resposta com relativa impavidez. As suas palavras seriam para outro enigmáticas, para mim não. Disse: ‘Quando seu pai ainda não cogitava em procurá-lo (a frase que empregou tinha forma menos austera) eu já era amigo de Sólon. Pode retirar-se’” (cit. por Nelson Werneck Sodré, História Militar do Brasil, Expressão Popular, 2ª ed., 2010, p. 220).

Da mesma forma, em Os Sertões, Euclides registra a quase incrível popularidade de Floriano entre as tropas que combatiam pela República, já no governo do seu sucessor:

“A luta pela República, e contra os seus imaginários inimigos, era uma cruzada. Os modernos templários, se não envergavam a armadura debaixo do hábito e não levavam a cruz aberta nos copos da espada, combatiam com a mesma fé inamolgável. Os que daquele modo se abatiam à entrada de Canudos tinham todos, sem excetuar um único, colgada ao peito esquerdo em medalhas de bronze, a efígie do marechal Floriano Peixoto e, morrendo, saudavam a sua memória — com o mesmo entusiasmo delirante, com a mesma dedicação incoercível e com a mesma aberração fanática com que os jagunços bradavam pelo Bom Jesus misericordioso e milagroso…” (Euclydes da Cunha, Os Sertões, Laemmert, 3ª ed., 1905, pp. 467-468).

O retrato de Floriano em Os Sertões, publicado sete anos após a morte do marechal, não é, em absoluto, negativo.

O modo como Floriano liderou a resistência à restauração – o enfrentamento das revoltas “federalista” e “da Armada” – é conhecido, ainda que seja pintado com deformações, às vezes muito bizarras. Como disse um biógrafo (e o citamos porque não se trata de um biógrafo “de esquerda”, pelo contrário):

“Floriano Peixoto representava as forças progressistas de um novo Brasil, por isso mesmo acabou por tornar-se alvo de uma infamante campanha de desmoralização por parte dos que integravam os movimentos reacionários, fossem eles quais fossem. Apesar de tentar por todos os meios a pacificação nos Estados, o vice-presidente continuava a ser insistentemente acusado de violar a Constituição e de causar a queda de muitos governos estaduais e municipais” (J. Natale Netto, Floriano, o Marechal Implacável, Novo Século, 2008, pp. 184-185).

São interessantes as considerações desse mesmo autor especificamente sobre o florianismo:

“Mas o que representava essa corrente, surgida no processo de consolidação do regime republicano? Nada mais era do que a atitude de vários segmentos da sociedade juntos numa luta contra tudo o que pudesse ser considerado um risco de retorno à monarquia. Isso englobava pessoas, ideias, partidos políticos e tudo o que fosse antagônico ao espírito republicano. Obviamente, o movimento elegeu como sua figura-símbolo o marechal Floriano Peixoto que sempre angariou adeptos por ter editado medidas de contenção do custo de vida, de desenvolvimento à indústria e principalmente pelas ações radicais contra adversários políticos, mostrados como adversários do novo regime e, em última análise, também da pátria” (J. Natale Netto, op. cit., p. 219).

E, mais adiante:

“… o ‘florianismo’ pôde ser entendido até mesmo como um projeto de esquerda, embora efêmero, já que se mostrava intransigentemente nacionalista. Seu significado sugeria não só a mudança da economia através de um viés de industrialização como, principalmente, a sustentabilidade do ideário patriótico naturalmente robustecido de marcantes valores democráticos” (idem, p. 238).

E aqui estamos em pleno projeto florianista. A questão é, exatamente, qual a política econômica de Floriano, que provocaria a reação dos maragatos gaúchos e dos aristocratas da Marinha, ao mesmo tempo que uniria, em torno do vice-presidente, a “mocidade estudantil, mocidade militar, intelectuais, camadas numerosas da população urbana”, a que ele se referiu em seu testamento.

Em termos genéricos, já mencionamos a observação de J. Natale Netto sobre a industrialização. Como ele também aponta, “já empossado, Floriano passou a reprimir a jogatina desenfreada e a impor o tabelamento dos gêneros alimentícios de primeira necessidade, ato que esbarrou, de imediato, na oposição dos especuladores, que se aliaram às correntes reacionárias de oposição ao governo” (p. 113).

Nelson Werneck Sodré é mais detalhado sobre a política econômica de Floriano:

“Poderosamente reforçada pelo grupo comercial, a classe dos senhores empreenderia a luta contra os elementos da classe média que, sensíveis às reivindicações burguesas, tentavam um reformismo modesto. O aspecto exterior dessa luta fixou-se na reação ao florianismo. Este, realmente, caracterizaria a sua ação administrativa por uma série de concessões à indústria nacional. A lei orçamentária para o exercício de 1892, muito mais por exigências fiscais naturalmente, elevaria para 50% os adicionais sobre os direitos de importação, exceto para os alimentícios; alguns artigos, como os têxteis e bebidas, eram pesadamente taxados. Mas o florianismo foi mais longe e decretou auxílios pecuniários à indústria nacional, na conformidade com o que ficou estabelecido na lei de 17 de dezembro de 1892. Além disso, as indústrias foram beneficiadas com isenção de direitos sobre equipamentos e matérias-primas vindas do exterior. Toda essa política começaria a ser liquidada, em 1894, com o início do governo de Prudente de Morais” (Nelson Werneck Sodré, História da Burguesia Brasileira, Civilização Brasileira, 2ª ed., 1967, p. 206).

Como observaram alguns historiadores e biógrafos (inclusive alguns que são insuspeitos em relação a Floriano, como José Maria Bello e J. Natale Netto), descendentes político-ideológicos dos inimigos do “Marechal de Ferro” (para usar o cognome que serviu de título ao perfil traçado por Euclides da Cunha) procuram pintar um quadro desastroso do seu governo.

Um dos recursos mais solertes são as comparações do Produto Interno Bruto (PIB) entre o seu e outros governos da República.

Se o PIB (ou o crescimento do PIB) fosse uma medida de quanto é progressista um governo, Médici teria sido um presidente imensamente melhor do que Getúlio Vargas. E isso, certamente, não é verdade – os brasileiros o sabem, pelo que sentiram na própria pele.

A questão decisiva, portanto, não é o PIB, que é apenas um resultado econômico – e um resultado econômico superficial.

O que importa, para julgamento de um governo, é o caráter de sua política econômica. Por exemplo, se compararmos a política econômica de João Goulart com a política econômica da ditadura (seja a de Roberto Campos, seja a de Delfim Netto) não haverá muita dúvida de qual a política econômica – portanto, o governo – mais progressista em termos de democracia e independência nacional.

Reproduzimos acima o resumo de Nelson Werneck Sodré da política econômica de Floriano. É verdade que, em meio à baderna restauradora, o governo Floriano não conseguiu deslanchar uma ampla ação administrativa. Seu primeiro ministro da Fazenda, o futuro presidente Rodrigues Alves, limitou-se a medidas de contenção da desordem financeira. Mas seu segundo ministro da Fazenda, Serzedelo Correia, ex-capitão do Exército, era o maior defensor da indústria e da soberania econômica nacional no fim do século XIX e começo do século XX.

Porém, não é demais, além da anarquia econômica provocada pelas revoltas “federalista” e “da Armada”, enfatizar a herança que o governo Floriano recebeu após o desmonte da política de Rui Barbosa. Aqui, o leitor há de nos permitir mais uma citação mais ou menos longa:

“Era, pois, dos mais penosos o acervo que recebia o governo de Floriano com a vitória do contragolpe de 23 de novembro [a deposição de Deodoro]. A crise financeira mostrava os seus índices naturais na constante baixa do câmbio, na desvalorização de todos os títulos e no decréscimo das rendas públicas. A situação de insegurança política e a liquidação da jogatina do Encilhamento tornavam ainda mais delicada a tarefa do novo governo (…). As consequências da abolição do trabalho escravo faziam-se sentir fortemente na escassez de braços para a agricultura, determinando também altos salários no trabalho livre dos campos. A grande lavoura de cana de açúcar do Norte, que não tivera, como a do café paulista, o colono estrangeiro para substituir o braço escravo, definhava, depauperando a já precária economia local. O Estado do Rio, dos velhos e opulentos barões latifundiários da Monarquia, inicia rápida decadência. O Brasil saía dos audaciosos planos do Governo Provisório, senão mais pobre, de certo mais cheio de apreensões e angústias, viciado pelos hábitos de jogo e de aventura, anarquizado política e administrativamente. A receita da União era de 208 mil contos, ou apenas 50 mil mais do que a do último exercício do Império. A circulação do papel-moeda dos bancos e do Tesouro, em sua maior parte concentrada no Rio, elevara-se de 200 mil, em 15 de novembro de 1889, a 514 mil contos, isto é, a mais do duplo da receita federal, o que ainda não se verificara, nem se verificou, parece, na história financeira do Brasil. A República não contraíra empréstimos externos, contentando-se, pois, com os 29 milhões de libras que lhe legara o regime passado. Aproximava-se de 400 mil contos a dívida interna consolidada. A exportação do café e da borracha nativa da Amazônia, conservando mais ou menos o nível de 1889, £ 22 milhões para o primeiro, e £ 5.500 mil para o segundo daqueles produtos, sustentavam a economia nacional. As tentativas para fomentar a indústria fabril ainda não podiam produzir resultados apreciáveis: continuava o Brasil adstrito ao antigo tipo econômico de exportador de alguns gêneros coloniais e matérias-primas e de importador de todas as outras utilidades indispensáveis às suas mínimas exigências de consumo” (José Maria Bello, História da República, Companhia Editora Nacional, 1956, pp. 135-136).

As tentativas de ajudar a indústria (os “auxílios à indústria”) provocariam a ação do capitalismo financeiro inglês – isto é, do imperialismo – contra o governo brasileiro. Em 1892, Rangel Pestana, fazendo coro à banca inglesa no Congresso brasileiro, se manifestaria contra os “auxílios à indústria”, ou seja, contra os empréstimos estatais, propostos pelo governo às empresas industriais, por solicitação destas:

“A questão do auxílio às indústrias suscitou, em 1892, apaixonadas discussões teóricas a respeito do princípio da intervenção do Estado na esfera econômica. (…) No Senado, abriu o debate contrário ao auxílio, o representante de São Paulo, Rangel Pestana, alegando que o simples projeto já havia provocado, em Londres, a queda dos títulos brasileiros e invocando os maus resultados do auxílio à lavoura. (…) O que porém, inquietava, particularmente, Rangel Pestana, era o abalo que a medida produziria sobre o nosso câmbio e sobre o nosso crédito no exterior, abalo previsto por um telegrama de Rothschild, publicado nos jornais. A essa alusão a banqueiros estrangeiros, ergueram-se os industrialistas e Amaro Cavalcanti, negando que a concessão de auxílio às indústrias pudesse influir perniciosamente sobre o nosso câmbio, afirmava preferir votar leis necessárias ao país antes com os olhos nas necessidades deste, do que obedecendo ao mot d’ordre que nos vinha do estrangeiro, às vezes ditado no seu interesse, somente.

“Publicara o Jornal do Comércio, alguns dias antes a seguinte notícia: ‘Consta-nos que os Srs. Rothschild telegrafaram ao Sr. Ministro da Fazenda fazendo-lhe sentir que a emissão de apólices para auxílio às indústrias, se resolvida pelos poderes públicos, não será de bom efeito no crédito do país’.

“Dois dias mais tarde transcrevia o mesmo órgão o seguinte telegrama, proveniente de Londres : ‘Os títulos brasileiros de 4% caíram hoje a 60 1/4. A queda é atribuída, primeiro a receio da emissão de cem mil contos de Bonds aduaneiros, que aqui se considera como aumento virtual da circulação, o que se julga imprudente, e segundo a notícia de revolução no Rio Grande do Sul.’ (Os cem mil contos constituíam o montante que se pretendia emitir para auxiliar a indústria nacional)” (Nícia Vilela Luz, A Luta pela Industrialização do Brasil, Alfa Omega, 2ª ed., 1978, pp. 110-111, grifos nossos).

A outra das principais deformações usadas contra o período de Floriano Peixoto no governo da República é a oposição de alguns nomes famosos da intelectualidade – por exemplo, Rui Barbosa, Olavo Bilac, José do Patrocínio, Luís Murat e Pardal Mallet.

Tem-se a impressão, geralmente, de que a intelectualidade em peso ficou contra Floriano.

Mas isso não é verdade.

Apenas é um efeito do ocultamento daqueles que foram partidários de Floriano – como Raul Pompeia, Euclides da Cunha, Coelho Neto, Artur Azevedo, Medeiros e Albuquerque, Luiz Edmundo, Guimarães Passos.

Hoje, nas escolas, o romance antiflorianista Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, tornou-se, parece, leitura obrigatória. Do ponto de vista político, o romance é um equívoco semelhante à famosa crônica em que o mesmo autor considera o Império – a superestrutura da escravidão – superior à República. Para um homem que não era branco, essa constatação é algo semelhante a uma alucinação.

Lima Barreto ficará na história da literatura brasileira, mas não pelo seu equivocado e reacionário antiflorianismo – que, no limite, como nos demais antiflorianistas, contacta (quando não vai além do contacto) com o antirrepublicanismo. Aliás, do ponto de vista estritamente literário, Clara dos Anjos, também de Lima Barreto, nos parece superior a Triste Fim de Policarpo Quaresma. Mas isso o leitor, certamente, pode decidir por si próprio.

Quanto a Rui Barbosa, sua divergência com Floriano, que o levou ao exílio na Inglaterra, é completamente formal. Rui não tem divergências quanto à política econômica. Ele mesmo, em um de seus discursos no Senado, referiu-se à solidariedade de Floriano quanto à sua política econômica:

“… nos meus atos financeiros não há ninguém mais solidário do que o atual presidente da República. S. ex. sufragou sempre com a maior expansão os meus projetos, que eu costumava submeter à sua aprovação, em sua casa, antes de levá-los a conselho. Usava dizer o meu honrado colega (e disso tenho testemunha) que comigo estaria pronto para ir aonde quer que fosse” (Rui Barbosa, Finanças e Política da República, Discursos e Escriptos, Companhia Impressora, Capital Federal, 1892, p. 185).

Portanto, o problema de Rui, em relação a Floriano, é o formalismo jurídico. Entretanto, nesse sentido, ele não tem razão em colocar o formal acima da realidade.

Floriano, sem dúvida, foi um defensor da essência – e não da forma – da democracia e da soberania nacional. Porém, a alegação de que a convocação imediata de eleições somente se aplicava, após a renúncia de Deodoro, aos presidentes e vice-presidentes eleitos por via direta é, inclusive formalmente, correta.

Deodoro e Floriano haviam sido eleitos, de acordo com as disposições transitórias da Constituição de 1891, por via indireta. Portanto, o dispositivo que obrigava a eleições se o presidente ou o vice-presidente renunciassem antes da metade do mandato, não se aplicava a eles, o que foi reconhecido pelo Congresso, reaberto por Floriano.

Na atitude formalista (quase escrevíamos “ultra-formalista”) de Rui, expressava-se o medo das últimas consequências da revolução, que tornara-se um conflito sangrento. Um medo característico de um bacharel e intelectual – mas não de um cabo de guerra, como Floriano.

Não é preciso seguir, aqui, a trajetória dos outros opositores de Floriano – ou de seus partidários – para perceber o lado da história que a maioria deles escolheria.

Basta dizer que o florianismo continuaria a existir e viria outra vez à tona da onda histórica, com o tenentismo e a Revolução de 30.

Mas, antes disso, Floriano receberia o reconhecimento e a sua grande homenagem do povo brasileiro.

A historiografia brasileira tem algumas marcas reveladoras, em geral de caráter reacionário. Já nos referimos, em artigo anterior, à tentativa de passar a revolução republicana – como a chamou Rui Barbosa – por um “golpe de Estado” (v. HP 05/02/2024, A República e a revolução), o que se estende até à Revolução de 30, tratada como outro golpe, dessa vez um golpe das oligarquias e não uma revolução contra as oligarquias.

Outra dessas marcas reacionárias é a campanha contra a política econômica do Governo Provisório da República – isto é, a política econômica do primeiro ministro da Fazenda republicano, Rui Barbosa -, sempre descrita como “desastrosa”, tal como também vimos em artigo anterior. Recentemente, lemos um texto acadêmico no qual o autor pretendia mostrar que Celso Furtado falhara em sua avaliação do “encilhamento”. Onde, segundo esse professor de uma de nossas mais conceituadas universidades, Celso Furtado falhara? Ora, em subestimar a magnitude dos erros de Rui Barbosa. Fora isso, diz o autor, Furtado – em sua Formação Econômica do Brasil – está certo…

Outra marca reveladora – e do mesmo tipo, porque com o mesmo objetivo – é a tentativa de tratar Floriano Peixoto como um ditador de quartel, uma espécie de sargentão ignorante e oligofrênico, ao mesmo tempo que se trata Campos Sales, presidente do governo mais reacionário e mais submisso do início da República, como grande estadista, equilibrador das nossas finanças, etc., etc., etc.

No entanto, ninguém, até hoje, pretendeu negar a popularidade de Floriano antes e depois da Proclamação – desde a Guerra do Paraguai até a sua morte. Nem mesmo os seus inimigos (o próprio visconde de Ouro Preto reconheceu a popularidade de Floriano, entre os militares, ao fim do Império; sobre essa popularidade no Paraguai, ver o livro do general Dionísio Cerqueira, Reminiscências da Campanha do Paraguai, BE, 4ª ed., 1980).

Seu funeral, aliás, definiu a grandeza do homem. Temos, dele, um testemunho, aquele do grande cronista Luiz Edmundo, autor de O Rio de Janeiro do Meu Tempo, em outro livro (De um Livro de Memórias):

“Pouco depois de retirar-se do poder, entregando, pelo seu ministro da Justiça, o cargo ao presidente ‘eleito’, o paulista Prudente de Morais, não resistindo aos padecimentos, Floriano, recolhido a um lugarejo, a Divisa, chegava ao fim. Pedira que ali mesmo o sepultassem, mas as autoridades não permitiram, e o corpo foi transportado para o Rio, embalsamado e colocado na igreja da Cruz dos Militares onde a multidão, silenciosamente, desfilou. Luiz Edmundo, que foi vê-lo, conta: ‘Lá estava, queda, para sempre, aquela mão, aquela inerte mão que comprimira a minha, álgida, magra, longa, como que modelada em bronze. Olhei-a demoradamente, lembrando a cena do Arsenal. Parece que chorei, não me recordo. Sei, apenas, que resistir não pude a uma secreta força que, insensivelmente, para ela me arrastava e conduzia. Da mesma me aproximei, como um autômato, presa do mais terno e mais sincero sentimento. Sobre ela me curvei, e, como se beijasse a mão de um santo, comovido, beijei-a.’ Em 6 de julho, foi realizado o enterramento. Luiz Edmundo, que o presenciou, afirma que ‘nem pelos dias reservados às cerimônias religiosas da Paixão de Cristo o Rio de Janeiro apresentava uma aparência, assim, tão cheia de desconsolo e de tristeza. Toda uma multidão silenciosa e abatida, desde cedo, havia saído para a rua. Não havia, nas lojas dos floristas, uma só rosa, um cravo, uma dália ou uma papoula para vender. E, entretanto, na véspera, de Petrópolis, de Teresópolis e de Friburgo, por prevenção, tinham chegado carregamentos colossais de flores, logo, velozmente, transformadas em coroas e palmas. Muito antes da hora marcada para o começo das exéquias, o povo já havia obstruído, completamente, os logradouros mais avizinhados ao templo de onde deveria sair o ataúde do grande morto, em direção ao cemitério.’

“A imponência da solenidade estava na massa popular, a maior que a capital já vira reunida: ‘Um terço dos moradores da cidade ou, talvez, mais, assistiu à solene passagem desse cortejo, que levou horas e horas a desfilar. Pelas calçadas, portas e janelas das casas, toda uma multidão se aglomerava, em cachos. Vi homens de joelhos, pelas ruas, senhoras que choravam. Gente trepada pelos combustores da iluminação, pelos postes dos fios telegráficos e até pelos beirais de altos e íngremes telhados. Jamais uma romaria cívica, até hoje, logrou, que eu saiba, uma imponência igual. Os funerais de Rio Branco foram notáveis, foram, mas não tiveram, como os de Floriano, a solenidade, a magnificência e até mesmo o concurso de uma tão grande massa popular. Para se ter uma pequena ideia do que foi esse acontecimento extraordinário, basta lembrar que, no momento em que chegava à porta do Campo Santo o ataúde que conduziu o corpo do grande morto, a larga fila dos que o acompanhavam, em passo vagaroso, ainda era vista, pelo Largo da Glória, entrando pela rua do Catete. Uma verdadeira apoteose!’

“E a sombra do consolidador se projetaria além, no tempo, sobre os governos posteriores, e em sua memória a vigilância pela República crescia, e se mobilizavam os espíritos, nas horas de dúvida ou de ameaça. Cumprira, exemplarmente, a sua missão. E isso não lhe foi perdoado jamais. Depois de seu desaparecimento, as paixões prosseguiram, como se ele estivesse vivo. Tocara tão fundo o que havia de nacional em nossa gente que jamais lhe seria feita a justiça, senão a protocolar: a história oficial relegou-o praticamente ao silêncio. Cometera crime inexpiável: defender o povo brasileiro. Como a Tiradentes, que permanecera esquecido durante todo o período da monarquia, sendo uma das primeiras preocupações dos republicanos retirá-lo do olvido a que fora propositadamente atirado, não se perdoaria a Floriano a sua firmeza em defesa das instituições democráticas, no que elas tinham de essencial e dentro das condições da época, nem a defesa dos interesses populares contra o privilégio, nem o da soberania contra a intervenção estrangeira. O povo o guardou, entretanto, como a Tiradentes, e o fez seu” (Nelson Werneck Sodré, História Militar do Brasil, Expressão Popular, 2ª ed., 2010, pp. 225-227).

Que diferença em relação ao fim de Campos Sales, logo após o término de seu mandato – o que também foi o fim de sua vida política:

“A 15 de novembro de 1902 Campos Sales transmitia o poder a Rodrigues Alves. Em seguida, preparou-se para regressar a seu Estado. Dirigiu-se à estação, onde tomaria o noturno paulista. (…) Durante todo o trajeto, foi estrepitosamente vaiado. O trem em que viajava foi apedrejado nos subúrbios. Tornou-se necessário mobilizar a Polícia, conter a multidão que o seguia e que, depois de sua partida, procurou as redações dos jornais que o haviam apoiado, para depredá-los” (Hélio Silva e Maria Cecília Ribas Carneiro, O Poder Civil, História da República Brasileira, Editora Três, pp. 106-107).

Entretanto, nenhum documento é tão assertivo sobre a posição do marechal Floriano Peixoto na proclamação da República quanto o próprio panfleto antirrepublicano do último presidente do conselho de ministros do Império, Afonso Celso de Assis Figueiredo, visconde de Ouro Preto.

Afonso Celso reproduz, por exemplo, um relato do tenente-coronel Jacques Ourique:

“… o general Deodoro no dia 13, mandou chamar o ajudante general do Exército, marechal de campo Floriano Peixoto e confiou a sua lealdade a posição em que se achava o Exército. Tendo ponderado o marechal Floriano Peixoto que, a seu ver, os atos de governo não autorizavam ainda semelhante extremo e talvez fosse preferível fazer uma última tentativa junto ao gabinete, o marechal Deodoro declarou categoricamente ao seu velho amigo que o movimento era irrevogável e que ele já se achava à frente de seus companheiros” (cf. Visconde de Ouro Preto, Advento da Ditadura Militar no Brasil, 1891, ed. SF, 2017, p. 53, itálicos no original).

Ou seja, dois dias antes da Proclamação, Deodoro estava convicto de que a República era necessária, mesmo inevitável – e comunicou isso à segunda autoridade do Exército, após o ministro da Guerra, o ajudante general Floriano Peixoto, seu “velho amigo”, que fez apenas uma fraca objeção.

A narrativa de Ouro Preto do dia 15 de novembro de 1889 é interessante, ainda mais porque é insuspeita – ele pretende difamar o movimento republicano, mas consegue o contrário:

“Dando, pela quinta ou sexta vez, a ordem de ataque à coluna sublevada, ordem, torno a dizê-lo, – que o Sr. ministro da Guerra repetia em voz alta ao Sr. Floriano Peixoto, um jovem oficial, – creio que tenente, – que ali se achava, exclamou, dirigindo-se a mim: – Sr. ministro, pese bem a responsabilidade que assume: é tremenda; vai haver uma carnificina horrível e inútil!

“Sem redarguir-lhe, voltei-me para o Sr. ministro da Guerra e lhe disse:

“– Este oficial faltou ao dever militar; cumpra V. Ex.ª o seu.

“Em voz baixa advertiu-me ao ouvido o meu colega, Sr. Marechal visconde de Maracaju [ministro da Guerra]:

“– Não sabe V. Ex.ª quem é?… É filho do visconde de Pelotas”.

[O visconde de Pelotas era o marechal Câmara, herói da Guerra do Paraguai e um dos maiores líderes do Exército brasileiro.]

Mas, continuemos com o relato do visconde de Ouro Preto:

“Esta revelação, confirmando suspeitas que já me assaltavam, clareou-me à situação. Então compreendi tudo.

“Não mais me surpreendeu, nem que, ordenando pela última vez fosse desalojada e expelida a força que seguramente havia já uma hora afrontava o quartel-general, me prevenisse o Sr. ministro da Guerra que não poderíamos esperar vitória, – nem tampouco que oferecessem ao Ministério a retirada pelos fundos do edifício, o que terminantemente todos recusamos.

“Não podíamos esperar vitória, assegurou-me, porque em poucos instantes a artilharia reduziria a ruínas o quartel.

“– Mas essa artilharia pode ser tomada a baioneta, objetei; na pequena distância em que se acha postada, entre o primeiro e o segundo tiro de uma peça, há tempo para cair sobre a guarnição.

“– É impossível! As peças estão assestadas de modo que qualquer surtida será varrida à metralha!

“– Por que deixaram então que tomassem tais posições? Ignoravam isso?! Mas não creio na impossibilidade senão diante do fato. No Paraguai, os nossos soldados apoderaram-se de artilharia em piores condições.

“– Sim, observou o Sr. Floriano Peixoto, – mas lá tínhamos em frente inimigos e aqui somos todos brasileiros.

“Se eu pudesse ainda manter ilusões, elas se teriam dissipado ante essa frase” (cf. Visconde de Ouro Preto, op. cit., pp. 62-63, itálicos no original).

Não foi o primeiro, nem o último, naquela quadra histórica, a ter suas ilusões dissipadas.

Mas isso não aconteceu a Floriano que, é verdade, mantinha poucas ilusões – se é que as mantinha.

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